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Inadimplência de ICMS e coronavírus: empresários podem responder criminalmente?

Tributaristas alertam que MPs estaduais podem apresentar denúncias com base em decisão do STF

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definiu que os sócios podem responder pelo crime de apropriação indébita tributária pela inadimplência fiscal das empresas abriu espaço para que Ministérios Públicos estaduais apresentassem denúncias criminais contra empresários que deixaram de recolher tributos.

A finalização do julgamento pelo Supremo, entretanto, ocorreu em um longínquo dezembro de 2019, antes da crise deflagrada pela chegada do coronavírus no Brasil. Com a redução da atividade econômica em decorrência do isolamento social, as receitas caem e o caixa das empresas é prejudicado, de maneira que muitas pessoas jurídicas podem atrasar o pagamento de tributos no período em que perdurarem os efeitos econômicos da pandemia. Nesse cenário, os empresários podem ser responsabilizados criminalmente pela inadimplência de ICMS?

A tese fixada pelo Supremo no RHC 163.334 exige que para o crime ser configurado, além de estar inadimplente, o contribuinte precisa ter agido de forma contumaz e com dolo – ou seja, com intenção de tomar para si o dinheiro que pertence aos cofres públicos. Por isso, tributaristas questionados pelo JOTA estão divididos quanto ao risco de os empresários serem denunciados criminalmente pela inadimplência

Os mais otimistas ressaltam que os contribuintes provariam com facilidade na Justiça que a inadimplência fiscal decorre da grave situação financeira e que não há dolo. Outros advogados, no entanto, alertam que o Supremo não fixou objetivamente os critérios que configuram dolo e contumácia, e que a denúncia do MP por si só já pode comprometer a imagem dos empresários.

Sócios na mão do MP

O advogado que representou os contribuintes no julgamento do STF, Igor Mauler, avaliou que a tese fixada não esclarece objetivamente os critérios que definem um devedor contumaz. Portanto, há margem para os Ministérios Públicos estaduais denunciarem os contribuintes inclusive pelos períodos da crise sanitária e que os conceitos de dolo e contumácia acabem dependendo da interpretação subjetiva das instâncias ordinárias da Justiça.

“Os sócios ficam na mão do bom senso de cada promotor em fazer a denúncia, porque eles têm independência funcional. Até mesmo uma orientação da PGR [Procuradoria-Geral da República] não vincula ninguém. Só o Supremo poderia dar uma diretriz firme”, afirmou.

A maioria dos estados aprovou leis com critérios para caracterizar contribuintes como devedores contumazes, principalmente com base no número de meses em inadimplência e o valor da dívida fiscal em proporção ao patrimônio líquido.

A legislação do Alagoas, por exemplo, chega a declarar a contumácia após dois meses em dívida de ICMS-ST. O Paraná adotou um período mais longo, de oito meses de inadimplência de ICMS próprio para se caracterizar o devedor contumaz. Em São Paulo, a contumácia se configura após seis meses em dívida do ICMS próprio.

A professora de Direito Tributário da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tathiane Piscitelli lembra que a definição das leis estaduais é aplicada apenas para fins tributários, como impor um regime especial de fiscalização, exigir o pagamento antecipado do imposto ou proibir a utilização de benefícios fiscais.

“Se para fazer as denúncias criminais o MP dos estados se apropriar do conceito de devedor contumaz presente nas legislações estaduais para fins tributários, teremos um problema gigantesco. Não vai ter uniformidade na aplicação do conceito, porque ele não é uniforme no país, o que vai gerar mais judicialização”, avaliou.

Para a professora, a responsabilização penal seria uma medida desproporcional para punir contribuintes que estão em inadimplência por alguns meses. “Teria que ser uma conjunção de fatores que mostre que aquele contribuinte ofende a concorrência porque não paga tributo”, recomendou.

O tributarista Flavio Carvalho, sócio do escritório Schneider Pugliese, lembrou que algumas empresas já estavam com dificuldades financeiras antes da pandemia, de forma que com a queda da atividade econômica o período de mensalidades atrasadas aumentaria ainda mais.

“Você não pode afastar por completo a possibilidade de um procurador pedir a prisão de uma pessoa por entender que antes a empresa já estava devendo por alguns meses, ou deve recorrentemente, sempre entra parcelamento especial e não paga as parcelas”, ponderou.

Mesmo que a Justiça considere fracas as denúncias feitas durante o período afetado pela crise do coronavírus, Carvalho frisou que os empresários já teriam que arcar com o custo de se defender no Judiciário.

Há dolo de apropriação?

Por outro lado, alguns tributaristas ressaltam que os reflexos econômicos da crise sanitária são de conhecimento público e notório, com magnitude global. O tributarista Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich Vasconcelos Advogados, lembrou que tanto o setor privado quanto o público tomaram medidas para se adaptar ao isolamento social, e argumentou que nesse período o dolo não se configura porque com a redução drástica nas vendas o dinheiro sequer entra no caixa da empresa.

“Primeiro que seria irrazoável por parte do MP tentar responsabilizar o empresário no meio de uma crise como essa. Segundo que precisaria demonstrar que o empresário deixou de pagar o tributo para se apropriar do dinheiro recebido do cliente”, salientou.

“Isso é muito diferente da situação de as empresas fornecerem produtos e serviços e não receberem por isso, seja porque o cliente quebrou ou porque está com dificuldade de caixa. Vai haver uma sucessão de falências e situações financeiras gravíssimas. Quando a empresa deixa de receber, e consegue demonstrar isso com facilidade, mostra que não há dolo na inadimplência”, argumentou.

Para o advogado Fabio Calcini, sócio do escritório Brasil, Salomão e Matthes, está claro que neste momento as empresas deixam de recolher tributos porque estão divididas entre pagar o imposto ou o salário dos empregados – e não porque as vendas estão ocorrendo normalmente e os sócios decidem deliberadamente ficar com o dinheiro que seria destinado aos cofres públicos.

“Não houve pretensão maliciosa de auferir vantagem com uma suposta estratégia de não recolher. O momento é de calamidade, de compreensão de toda a sociedade, e o MP tem que estar na mesma linha”, avaliou.

MPSP: Cautela dom inadimplência

Em nota enviada ao JOTA, o promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Crimes de Sonegação Fiscal do MPSP Luiz Henrique dal Poz disse que inadimplência pontual e situações de equívoco contábil são “analisadas com cautela, diferentemente de fraudes estruturadas em empresas.”

“Dificuldade econômica e inexigibilidade de conduta diversa não devem se confundir com fraude sonegatória”, frisou o promotor.

No Direito, a inexigibilidade de conduta diversa ocorre quando não é possível que o agente tome uma atitude diferente da que ele tomou – neste caso, pela falta de caixa, entre pagar salários ou tributos não seria razoável exigir que o contribuinte priorizasse as obrigações fiscais.

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