O Ministério Público do Trabalho (MPT) em Rondonópolis obteve liminar em ação civil pública movida em face de Gold Life Emergências Ltda. e do Sindicato dos Profissionais de Enfermagem do Estado de Mato Grosso (SINPEN/MT). A decisão veta a inclusão de cláusula em Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) que autorize empregados da empresa lotados em Alto Taquari, município a 480 km de Cuiabá, a cumprirem escalas de trabalho de 24x48 horas, que impliquem jornada de trabalho diária superior a 12 horas. A Justiça do Trabalho fixou multa de R$ 50 mil por instrumento coletivo celebrado em desacordo com a obrigação estabelecida.
A Gold Life tem cerca 10 empregados em Alto Taquari, sendo seis resgatistas, três condutores de ambulância e uma enfermeira. Em fevereiro deste ano, o MPT recebeu denúncia sigilosa, apontando, dentre outras irregularidades, que esses trabalhadores estariam laborando com jornadas excessivas de 240 a 264 horas por mês, situação esta prevista no Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) 2021 /2022. Antes do ajuizamento da ação, o MPT notificou a empresa e a entidade sindical, mas ambas defenderam a legalidade do instrumento coletivo e manifestaram desinteresse na assinatura de Termo de Ajuste de Conduta (TAC).
Com a aproximação da data-base da categoria, em 22 de fevereiro, o MPT reforçou na ação que, caso a Justiça do Trabalho indeferisse a tutela de urgência, haveria uma concreta possibilidade de nova pactuação dessa cláusula em Acordo Coletivo de Trabalho, com a renovação da ilegalidade a partir do ano que vem.
Para o MPT, os réus agiram conjuntamente para burlar os sistemas de compensação de jornada legais, introduzindo sistema de jornada há muito rechaçada pela jurisprudência trabalhista. De acordo com a Constituição Federal e a CLT, a jornada normal de trabalho não pode ser superior a oito horas diárias e o número máximo de horas suplementares deve corresponder a duas, limitação que deve ser observada mesmo em caso de compensação de horários.
O MPT pontua que os limites legais e constitucionais das jornadas de trabalho são estabelecidos para não haver prejuízo à saúde e à vida social dos trabalhadores. “O bem jurídico protegido pela imposição de limites à jornada de trabalho, nos termos da Constituição e da lei, é a saúde do trabalhador”, salienta o órgão.
O MPT observa que os preceitos relacionados à jornada possuem natureza cogente, salvo condição mais benéfica para o trabalhador, ou seja, não podem ser violados pela vontade do empregador, ainda que com a conivência do empregado ou do sindicato que representa a categoria profissional, como no presente caso.
“Importante registrar que o argumento apresentado pelas rés [sindicato e Gold] de que os trabalhadores manifestaram preferência pela jornada de 24x48 não afasta a ilegalidade da sua prática, especialmente porque o principal motivo indicado para existir essa preferência decorre do fato de boa parte dos trabalhadores da área da saúde terem outro emprego no período de descanso, o que torna a prática ainda mais irregular, pois o suposto descanso de 48 horas não é efetivamente gozado pelo trabalhador e a exposição à insalubridade e ao desgaste físico e mental acabam por ser ainda mais acentuados”.
O MPT salienta que tanto empresa quanto sindicato têm o dever de eliminar ou reduzir quaisquer condições que comprometam a preservação da higidez física e mental dos trabalhadores. “A limitação da jornada em oito horas por dia não é aleatória, mas sim resultado de estudos sobre a saúde do trabalhador e à integridade das bases de nossa sociedade, as relações familiares e de amizade, objetos que merecem resguardo pela atuação do MPT”.
O MPT aponta prejuízos de quatro ordens resultantes do descumprimento da jornada de trabalho legal: biológicos, sociais, econômicos e humanos. “Os fundamentos biológicos concernem aos efeitos deletérios psicofisiológicos decorrentes da fadiga. Os sociais à necessidade de propiciar ao empregado tempo para desfrutar da companhia de sua família, de lazer e estudo. Os efeitos econômicos dizem respeito ao fato de que a redução de jornada implica num maior número de pessoas empregadas, além de aumentar a disposição e produtividade dos trabalhadores. Já os fundamentos humanos residem no incremento do número de acidentes em decorrência da fadiga ocasionada pelas jornadas extenuantes”.
No caso das atividades relacionadas a serviços de saúde, os prejuízos são ainda mais graves, em razão dos efeitos negativos sobre a população que necessita do atendimento de profissionais descansados para o exercício adequado de suas funções. “As extenuantes jornadas diárias de trabalho de 24 horas praticadas pelos profissionais de saúde que laboram para a primeira ré (muitas vezes intercaladas com outros plantões de 24 horas ao invés das supostas 48 horas de descanso) (...) os submetem, naturalmente, a riscos mais acentuados de contração de doenças ocupacionais e a um risco maior a acidentes de trabalho, expondo, inclusive, os pacientes a graves perigos. Ora, ninguém é capaz de se manter acordado e no desempenho normal de sua atividade laboral por 24 horas consecutivas, ainda mais quando a atividade exige alto índice de concentração, como ocorre com os profissionais de saúde, em que um erro, por menor que seja, pode causar danos irreversíveis a um paciente e ao próprio trabalhador!”.
Na decisão de 24 de novembro, a juíza Michelle Trombini Saliba, em atuação na Vara do Trabalho de Alto Araguaia, assinalou que os documentos apresentados pelo MPT preencheram os requisitos necessários à concessão de tutela de urgência de natureza antecipada, a fim de evitar que tal prática se perpetue (tutela inibitória). A magistrada observou que, “de acordo com o entendimento jurisprudencial majoritário, é inválida a jornada de 24x48, ainda que pactuada por meio de norma coletiva, por extrapolar os limites previstos no art. 7.º, XIII, da CF/88, impondo ao trabalhador uma jornada excessiva, prejudicial à sua saúde”.